Artigo
DO SENADOR FLÁVIO ARNS (PT – PR)
Senador Flávio Arns
Do veto ao Projeto de Lei Nº20, de 2008 (Nº7.460/06 na Câmara dos
Deputados), que “acrescenta dispositivo à Lei Nº7.853, de 24
de outubro de 1989, que dispõe sobre pessoas portadoras de deficiência,
para caracterizar a visão monocular como deficiência visual”.
Pronunciamento realizado pelo Senador Flávio Arns no Plenário do
Senado Federal em 12 de agosto de 2008.
Senhor Presidente
Senhoras Senadoras e Senhores Senadores
No dia 1º de agosto deste ano, foi publicada a
Mensagem de Veto Nº570, por meio da qual o Presidente da República
comunicou ao Presidente desta Casa Legislativa o veto integral
ao Projeto de Lei Nº20, de 2008 (Nº7.460/06 na Câmara dos Deputados),
de minha Relatoria, que “acrescenta dispositivo à Lei Nº7.853,
de 24 de outubro de 1989, que dispõe sobre pessoas portadoras de
deficiência, para caracterizar a visão monocular como deficiência
visual”.
Para discutir as razões deste veto, estive reunido na semana passada
com o Ministro Paulo de Tarso Vannuchi, da Secretaria de Direitos
Humanos, juntamente com a coordenadora-geral da CORDE (Coordenadoria
Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência),
Izabel Maior, ocasião em que justifiquei a necessidade do reconhecimento
da visão monocular como deficiência.
Nesta oportunidade, ocupo a Tribuna desta Casa para novamente manifestar-me
quanto ao referido veto presidencial, contra-argumentando as razões
apresentadas na mensagem que o veiculou.
O primeiro argumento apresentado como razão de veto foi no sentido
de que, segundo a Classificação Estatística Internacional de Doenças
e Problemas Relacionados à Saúde – CID-10, o enquadramento da visão
monocular como deficiência dependerá da acuidade visual do olho
único. Assim, por não se permitir parâmetro de diferenciação com
relação ao outro olho, pois somente um é considerado, haveria distorções
nas ações afirmativas, prejudicando pessoas com outras deficiências.
Para expor meu contra-argumento consideremos, de início, o que
sejam ações afirmativas. A Portaria nº 1.156/2001, do Ministério
da Justiça, dispõe que a ação afirmativa “constitui um dos instrumentos
de promoção da cidadania e da inclusão social, possibilitando a
garantia a todos os cidadãos brasileiros dos direitos consagrados
na Constituição Federal e na legislação ordinária”.
Nas palavras de Joaquim Barbosa Gomes, as ações afirmativas consistem
em "políticas
públicas (e também privadas) voltadas à concretização do princípio
constitucional da igualdade material e à neutralização dos efeitos
da discriminação racial, de gênero, de idade, de origem nacional
e de compleição física".
Assim, a política de reserva de cotas em concursos públicos constitui
uma forma de ação afirmativa, assim como a chamada “Lei de Cotas”,
que determina a contratação de percentuais variados de pessoas
com deficiência pelas empresas, proporcional ao número de funcionários.
Deste modo, o argumento apresentando ao veto é frágil, pois a inclusão
das pessoas com visão monocular não retira o direito de outras
pessoas com deficiência serem igualmente contempladas nas ações
afirmativas. Ao contrário, ao se vedar o enquadramento de pessoas
com deficiência às pessoas com visão monocular, também se promove
uma distorção nas ações afirmativas em desfavor destas pessoas.
A razão apresentada não merece prosperar, sobretudo porque caminha
na contramão do entendimento já sedimentado pelo Poder Judiciário
de nosso país, sendo importante destacar que a referência que aqui
faço ao Poder Judiciário não se resume aos magistrados de primeira
instância. Pelo contrário, faço referência ao entendimento recém
firmado pela Corte Máxima de Justiça do nosso país: o Supremo Tribunal
Federal, este qual, insta ressaltar, corroborou a reiterada jurisprudência
do Superior Tribunal de Justiça que, não é de hoje, já reconheceu
a visão monocular como deficiência.
Para reconhecer a visão monocular como deficiência o STF ponderou,
inicialmente, que o artigo 4º, inciso III do Decreto nº 3.298/99,
que regulamentou a Lei nº 7.953/89, ao considerar uma pessoa com
deficiência visual, toma como parâmetro a acuidade visual no ‘melhor
olho’, ou seja, considera os dois olhos: um melhor, outro pior.
Para o STF, a pessoa com visão monocular possui apenas um olho,
nunca dois. Assim, para a pessoa com visão monocular não existe
o ‘melhor olho’ já que o outro não pode servir de comparação por
ser desprovido de visão. Equivale dizer: o indivíduo que possui
visão monocular padece de maior deficiência do que aquele que sofre
limitação em ambos os olhos. Em suma, a falta de visão num olho
é mais comprometedora do que a perda parcial de visão nos dois
olhos. Neste sentido:
“Diversas são as dificuldades para quem tem visão monocular e dentre
elas podemos citar a vulnerabilidade do lado do olho cego e a alteração
das noções de profundidade e distância. Quanto a este último aspecto
é interessante notar a capacidade do ser humano de se adaptar às
adversidades: quem tem visão monocular não está incapacitado para
dirigir – a legislação de trânsito autoriza a licença na categoria
B -, mesmo com as alterações de profundidade e distância, porque
o condutor se adapta a essa nova forma de perceber fisicamente
o mundo. Tanto não significa, no entanto, que ele não encontre
dificuldade maior do que uma pessoa com visão normal, o que se
nota, por exemplo, quando dele é exigido ter a mesma percepção
de quem tem os dois olhos saudáveis.”
A tese acolhida pelo STF no sentido de que a pessoa com visão monocular
não possui os dois olhos, de modo a comparar-lhes a acuidade visual,
já havia sido sustentada no STJ.
Para o STJ, a interpretação literal do dispositivo do Decreto nº
3.298/99, que define as hipóteses de deficiência visual dirige-se
apenas às pessoas visão em ambos os olhos, caso contrário, não
teria sentido a expressão ‘no melhor olho’.
O STJ, porém, foi além deste argumento, sustentando que, em que
pese a visão monocular não estar contemplada no artigo 4º, inciso
III do Decreto nº 3.298/99, a interpretação deste dispositivo deve
levar em conta o sistema no qual está inserido e, portanto, não
pode ser lido isoladamente, mas em conjunto com o artigo 3º do
mesmo Decreto.
Como a pessoa com visão monocular não possui um olho, esta ausência
se encaixa no conceito de deficiência trazido pelo artigo 3º, inciso
I do Decreto nº 3.298/99, como sendo “toda perda ou anormalidade
de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica
que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do
padrão considerado normal para o ser humano”, deficiência esta
permanente que, na dicção do inciso II do referido dispositivo
legal, é “aquela que ocorreu ou se estabilizou durante um período
de tempo suficiente para não permitir recuperação ou ter probabilidade
de que se altere, apesar de novos tratamentos”.
Ainda, insta ressaltar, que não apenas a visão monocular foi reconhecida
como deficiência pelo Superior Tribunal de Justiça. Atualmente,
o STJ também vem reconhecendo como deficiência a surdez unilateral.
Outrossim, divirjo do segundo argumento invocado como razão de
veto, no sentido de que dispor sobre a visão monocular individualmente
contraria a tendência buscada de se estabelecer um modelo único
de classificação de deficiência, adotado pelo Estatuto da Pessoa
com Deficiência, que tramita no Congresso Nacional, e pelo Grupo
Interministerial criado com o objetivo de avaliar o modelo de classificação
e valoração das deficiências utilizado no Brasil.
Conquanto seja tendência estabelecer um modelo único de classificação
de deficiência, também é verdade que o texto do Estatuto da Pessoa
com Deficiência, também de minha Relatoria, já aprovado no Senado
e atualmente tramitando na Câmara dos Deputados, já prevê a visão
monocular como uma deficiência. Assim, tenho que o Poder Executivo
perdeu a oportunidade de antecipar um direito que já foi amplamente
debatido com a sociedade e que faria diferença imediata na vida
de milhares de brasileiros.
Assim, repito: por meio de veto, perdeu-se uma excelente oportunidade
de antecipar um direito que seria no futuro assegurado. Porém,
o receio é que, agora, por conta deste veto, um direito projetado
para acontecer futuramente possa ser suprimido.
Encerro este pronunciamento externando minha preocupação no sentido
de que as razões invocadas para o veto não sejam repetidas no futuro,
sobretudo porque, além do Estatuto da Pessoa com Deficiência, existe
outro projeto tramitando no Senado com o mesmo objetivo, no caso,
o Projeto de Lei 339/2007, igualmente por mim relatado.
Chamo a atenção dos Senhores Senadores e Senhoras Senadoras quanto
ao veto ao Projeto de Lei nº 20, de 2008, justamente porque as
razões que o motivaram são de frágil plausividade. Precisamos estar
atentos às razões de vetos aos Projetos de Lei aprovados pelas
Casas Legislativas deste Congresso, para evitar que boas propostas
apresentadas, debatidas e aprovadas deixem de ser aproveitadas
por justificativas que não se sustentam.
Muito obrigado.